Artigo: Deforma trabalhista

Por Renan Bernardi Kalil*

O Governo Temer, desde a sua interinidade, vem dando sinais que uma de suas prioridades é a reforma trabalhista. Isso foi reforçado em seu discurso de posse, quando afirmou que “para garantir os atuais e gerar novos empregos, temos que modernizar a legislação trabalhista. A livre negociação é um avanço nessas relações”.

Trata-se da prevalência do negociado sobre o legislado, em que tudo o que for pactuado pelo sindicato representante dos trabalhadores com as empresas ou o sindicato representante dos empresários irá substituir o que prevê a legislação, mesmo que esse acordo seja prejudicial aos obreiros. O empresariado defende com ênfase essa proposta, argumentado que permitiria modernizar a legislação trabalhista e valorizar a negociação coletiva.

Considerando a vagueza dos termos usados para defender a prevalência do negociado sobre o legislado, é importante vermos de qual liberdade, modernização e valorização estão falando o presidente da República e o empresariado.

Nas relações de trabalho são visíveis as diferenças entre patrão e trabalhador. O direito do trabalho é criado para atenuar essa desigualdade, a partir do estabelecimento de normas mínimas que devem ser aplicadas a todo contrato de trabalho. Nesse contexto, cabe às entidades sindicais defender os interesses dos trabalhadores de forma mais efetiva, tendo em vista que o poder de atuação é maior por meio da organização coletiva do que individualmente.

É verdade que no Brasil os sindicatos de trabalhadores enfrentam obstáculos à livre negociação. A título de exemplo, podemos mencionar as práticas antissindicais realizadas por empresas e pelo Estado, o reduzido número de dirigentes sindicais com garantia de emprego reconhecida em lei e a adoção indiscriminada de interditos proibitórios para inviabilizar o direito de greve.

Outro problema que afeta a promoção da livre negociação coletiva é a estrutura sindical brasileira. A existência do monopólio de representação e do financiamento compulsório – tanto das entidades de trabalhadores como das patronais -, faz com que a forma pela qual ocorra a expressão dos interesses dos grupos sociais fique muito aquém do desejável para os representados.

Assim, cabe a pergunta: qual o interesse em permitir que os sindicatos negociem condições de trabalho abaixo daquelas previstas em lei? A resposta é clara: para precarizar as condições de trabalho.

Em relação à modernização, argumenta-se que as leis trabalhistas são antiquadas e que a prevalência do negociado sobre o legislado permitiria atualizá-las. Inicialmente, é sempre importante recordar que a CLT não é um documento intocado de 1943. A legislação trabalhista passou por diversas transformações, especialmente nos últimos 40 anos, na maior parte das vezes para atender às demandas por flexibilização dos empresários.

Não negamos as diversas mudanças que o mundo do trabalho passou nas últimas décadas e que o trabalho do início do século XX tem diferenças do trabalho do século XXI. Contudo, não podemos perder de vista a razão primordial pela qual existe o direito do trabalho: fixam-se dispositivos jurídicos em favor do trabalhador considerando a desigualdade econômica (em prol do patrão) inerente à relação de trabalho. Qualquer proposta de mudança das leis trabalhistas para se afastar esse pressuposto tem, na verdade, o objetivo de acabar com o próprio direito do trabalho.

Sendo assim, questionamos: a autorização da revogação de dispositivos legais por meio da negociação coletiva fará com que a legislação trabalhista se torne mais contemporânea? A resposta é taxativa: não.

Por fim, analisemos a prevalência do negociado sobre o legislado e a valorização da negociação coletiva. É verdade que o art. 7º, XXVI da Constituição Federal reconhece as tratativas entre trabalhadores e empregadores. Entretanto, há um longo caminho a ser percorrido no Brasil: existem diversos casos em que os empregadores e o Estado se recusam a negociar com os trabalhadores, não há qualquer obrigação dos patrões apresentarem dados e informações da atividade empresarial durante as negociações (o que torna o processo pouco transparente) e dispensas coletivas são promovidas sem qualquer contato prévio com os representantes dos trabalhadores.

Ou seja, medidas com o objetivo de valorizar a negociação coletiva são importantes para melhorar o estado da arte da democracia sindical no país. Contudo, retirar o piso legal para que tudo seja acordado pelos sindicatos irá valorizar a negociação coletiva? A resposta é evidente: não.

Portanto, percebe-se que não há qualquer promoção de liberdade negocial, de modernidade da legislação trabalhista ou de valorização de acordos e convenções coletivas de trabalho na proposta da prevalência do negociado sobre o legislado. Utilizam-se palavras com conotações positivas para tentar convencer a opinião pública que a proposta é boa, quando, na verdade, os efeitos para o trabalhador serão deletérios.

Todas as vezes que pensamos em reformar algo, há um sentido implícito de aprimorar, revisar e corrigir, para melhor, o seu objeto. No caso específico da prevalência do negociado sobre o legislado, estamos diante de uma deforma trabalhista: seu objetivo é subverter o direito do trabalho, tornando as relações de trabalho mais precárias.

*RENAN BERNARDI KALIL é Procurador do Trabalho e vice-Coordenador Nacional de Promoção da Liberdade Sindical (CONALIS) do MPT

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