Artigo | Agrotóxicos: brincando com o veneno

Por Leomar Daroncho*

05/12/2016 - É chegada a data em que precisamos lembrar da tragédia de Bhopal. No dia 3 de dezembro completam-se 32 anos da maior catástrofe – documentada e localizada - da indústria química. Nesse dia, numa madrugada de 1984, numa miserável região da pobre Índia, uma fábrica de agrotóxicos explodiu. O veneno espalhou-se.

Fruto de uma extensa pesquisa, Dominique Lapierre e Javier Moro publicaram uma obra primorosa – baseada em fatos reais -, fundamental para que se mantenha a memória de evento tão emblemático para a humanidade. Em Meia-noite em Bhopal os autores descrevem com maestria o drama de uma série de personagens da paupérrima e festiva comunidade vizinha à fábrica, numa pobre região da Índia. A comunidade era tão humilde que chamava a engenhoca assassina de “fábrica bonita”.

Há riqueza de detalhes na descrição da tragédia humana e ambiental que, como anunciado na apresentação livro, “serve de advertência a todos os aprendizes de feiticeiro que ameaçam a sobrevivência de nosso planeta”.

Os relatos do acidente são descritos de forma humana, com grande sensibilidade, sem sonegar a crueza das constatações dos socorristas: “alguns infelizes tentam aliviar a dor apertando o peito com todas as forças. Muitos vomitam um líquido espumoso misturado com sangue, vítimas de fulminantes edemas pulmonares”.

A jornada de dois médicos, com seus estetoscópios que não ouviam resquícios de roncos agonizantes, é detalhada nos registros do que lhes parece mais estranho, “o estado de lerdeza, de embotamento, a amnésia manifestada pela maioria das vítimas, sintomas de que o sistema nervoso está gravemente prejudicado”.

A unidade da Union Carbide produzia o pesticida Sevin, tido como uma espécie de poção mágica para a “revolução verde”. O fabricante ignorou o levantamento de um enviado seu que apurou os seríssimos problemas de saúde causados pelo excessivo uso de agrotóxicos, por trabalhadores mal informados, na região de Tamil Nadu: cânceres de pulmão, estômago, pele e cérebro, além de transtornos psicológicos, de memória e de visão. 

O livro acompanha a história posterior de alguns dos sobreviventes. Ainda há entre 120 e 150 mil sobreviventes que batalham contra doenças crônicas. Situações em que há o comprometimento de pulmões, olhos e sistema reprodutor, além de quadros de ansiedade e de depressão. Como assinalam os autores, a catástrofe de Bhopal é diferente: “não termina nunca”. Passadas três décadas, “centenas de crianças continuam nascendo com malformações terríveis”.

Dentre nós, num momento marcado por notícias que embaralharam, aniquilam a lucidez, desequilibram e tornam imprevisível o arranjo das forças políticas, não surpreende que ganhem viço iniciativas tendentes a destruir mecanismos de proteção da sociedade – do ser humano e da natureza - contra os malefícios dos agrotóxicos.  

Consumimos um volume fantástico de agrotóxicos! Desde 2009 o Brasil é campeão do consumo de veneno. Somos o maior mercado consumidor de agrotóxicos do mundo. Os dados passaram a ser sonegados, mas não há dúvidas de que o nosso consumo anual ultrapassou a impressionante marca dos 5,2 litros por habitante. Em Mato Grosso, o consumo superou os 45 litros por habitante, em 2013. Em alguns municípios chegou-se a registrar os assustadores índices que beiram os 400 litros por habitante. Esses números não consideram os produtos clandestinos ou contrabandeados.

Aqui, como lá, há abundância de analfabetos, ambiciosos desinformados e informações manipuladas.

Não é difícil concluir que está se desenhando uma tragédia silenciosa.

Esse veneno todo está sendo dispersado sobre lavouras, campos, rios, florestas, tribos, cidades, animais, creches, escolas, hortas e casas. Ano após ano. É importante atentar para o detalhe cumulativo da exposição. É ele que vai gerar as doenças crônicas.

Aqui, até mesmo os que se dedicam ao agronegócio - e trabalham arduamente!- podem ser considerados vítimas de um modelo que impõe uma forma única de produção, tanto na ação ou omissão do Poder Público, na orientação das pesquisas e no direcionamento dos financiamentos, quanto na deficiência dos Programas Educativos e de informação estipulados na Lei dos Agrotóxicos, e na fiscalização e apuração das responsabilidades, previstas na mesma Lei.   

Em Bhopal, a empresa produtora de pesticidas (venenos agrícolas) negou-se a fornecer detalhes técnicos do evento que teria matado, imediatamente, entre 4 e 10 mil pessoas. Haveria mais de 200 mil intoxicadas pela nuvem tóxica exalada de uma fábrica de agrotóxicos. São referidos, também, 25 mil casos de cegueira, num universo de cerca de 50 mil incapacitados para o trabalho.

Em geral, os dados que mais impressionam dizem respeito aos resíduos em alimentos. Esse problema, prioritariamente urbano, também é grave. No final de novembro de 2016 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa divulgou o relatório do Programa de Análises de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – Para. Assinalou a preocupação com o risco agudo (intoxicações que podem ocorrer dentro de um período de 24h após o consumo do alimento). Avaliou 12 mil amostras de 25 tipos de alimentos. Os maiores riscos foram indicando para a laranja e para o abacaxi.

É um problema, também, mas não é o pior! O pior é a exposição prolongada e as doenças crônicas, nas regiões produtoras, em que campeia a exposição sem controle.

Em março de 2015 a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer – IARC -  analisou 5 ingredientes ativos de agrotóxicos em 11 países, incluindo o Brasil. Concluiu, em consonância com pesquisas do INCA, que o herbicida glifosato e os inseticidas malationa e diazinona são prováveis agentes carcinogênicos (causadores de câncer) para humanos. Os inseticidas tetraclorvinfós e parationa foram classificados como possíveis agentes carcinogênicos para humanos.

Agora, em 2016, estudos do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade de Campinas - Unicamp demonstraram que os organoclorados, atuando sobre o organismo humano, afetam os sistemas neurológico, cardiovascular, gastrointestinal e renal. 

A pesquisadora Larissa Mies Bombardi reuniu dados sobre pesticidas agrícolas em uma sequência cartográfica impressionante. Embora ressalve o conhecido problema da subnotificação (apenas 2% dos casos de intoxicações são registrados), elaborou um mapa que indica mortes por intoxicação, mortes por suicídio e outras intoxicações causadas pelos agrotóxicos no Brasil. Larissa revela a complexidade de um problema pouco debatido e que merece ganhar a pauta das grandes discussões do país.

Diante das evidências dos danos provocados pelos agrotóxicos, como sociedade dependente de um modelo de produção quimicodependente, somos tentados a continuar empurrando o problema para baixo do tapete ou a manter a indiferença diante das vítimas e sequelados deixadas pelo caminho.

Enquanto isso, no Brasil proliferam iniciativas legislativas tendentes a dificultar o controle. Propõem-se até mesmo a troca do nome – agrotóxicos – por um risível eufemismo: “Produtos Fitossanitários”. A despudorada iniciativa equivaleria à infantilidade de tentar enganar as formigas escrevendo “Sal” no pote de açúcar. Claro, com efeitos bem mais graves!

Levantamento indica que tramitam atualmente no Congresso Nacional meia centena de Projetos de Lei com o objetivo de fragilizar a Lei dos Agrotóxicos – Lei nº 7802/89. Há o óbvio propósito de desmontar a estrutura normativa ambiental que dispõe sobre as cautelas na produção, no manejo e no descarte dos pesticidas.

Propõem-se, inclusive, a criação de uma questionável Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários – CTNFito que, desequilibrando o peso das decisões em favor das áreas responsáveis pela produção agrícola, retiraria a força da manifestação das áreas vocacionadas para a preservação da saúde e do meio ambiente. Temos fundadas razões para acreditar que essa proposição é danosa aos interesses da vida humana.

Ao revisar o legado de Bhopal, os autores de Meia-noite em Bhopal concluem que “Ignorar os pobres. Esse é o drama de Bhopal”.

Aqui, como lá, há abundância de analfabetos, ausência de escrúpulos e informações manipuladas.

*LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho

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