Artigo | 130 anos da Lei áurea: abolição?

Por Lys Sobral Cardoso*

No próximo 13 de maio completam-se 130 anos da abolição oficial da escravatura no Brasil. A Lei Imperial nº 3.353, a Lei Áurea, anunciava: “é declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil”. Mas o comando da lei significou para o Brasil o fim da prática?

A abolição da escravatura veio desacompanhada das reformas sociais necessárias para a inclusão social dos escravos libertos. Nos anos que se seguiram a 1888, essas pessoas, agora “livres”, ou permaneciam nas fazendas, quando podiam ou eram aceitos, ou saíam em busca de condições de vida e de trabalho por lugares incertos, vivendo toda espécie de dificuldades e privações.

Relatam as historiadoras Ana Maria Lugão Rios e Hebe Mattos (2004): “O tempo viria cristalizar na região, para os libertos e seus filhos, duas possibilidades básicas, ou dois extremos polares em um contínuo possível de situações. Por um lado, a estabilidade via contratos, no mais das vezes informais, que seriam socialmente sedimentados com o passar do tempo e que aparecem, no discurso de filhos e netos destas famílias de camponeses negros, como de grande flexibilidade e tolerância. Por outro, uma extrema mobilidade tanto para algumas famílias como para uma maioria de homens que, solteiros ou casados, iriam habitar os barracões das fazendas que abrigavam os trabalhadores sazonais”. Estava delineado o panorama que permaneceria por tanto tempo.

Longos anos depois é que o governo brasileiro viria a adotar providências. A CLT só surgiu em 1943, a estabelecer as garantias básicas ao trabalhador na relação de emprego. Mesmo assim, excluiu expressamente, pasme-se, os empregados domésticos e os trabalhadores rurais, a não ser nos casos expressos na consolidação (poucos). O Estatuto do Trabalhador Rural só foi editado em 1973. A lei do empregado doméstico, em 2015, após intensa luta social para a aprovação da Emenda Constitucional 72. No mesmo passo, de acordo com o Atlas Fundiário do INCRA, cerca de 3% do total das propriedades rurais do país são latifúndios, ou seja, têm mais de mil hectares e ocupam 56,7% das terras agriculturáveis. Hoje, área ocupada pelos estados de São Paulo e Paraná juntos está concentrada nos 300 maiores proprietários rurais, enquanto 4,8 milhões de famílias estão à espera de terra para plantar. Essas são as pessoas que saem todos os anos Brasil afora em busca de alguma oportunidade de vida e de trabalho.

Após o Brasil reconhecer junto à ordem internacional que persistem formas contemporâneas de escravidão em seu território, em 1995, e assumir então o compromisso de adotar providências, algumas medidas de fato foram adotadas. Vieram dois Planos Nacionais de Erradicação do Trabalho Escravo, os Grupos Nacionais Móveis de Fiscalização, a “Lista Suja”, a inclusão no art. 149 do Código Penal das modalidades de trabalho em condições análogas à de escravo, a melhor estruturação dos quadros dos órgãos de fiscalização (Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Ministério Público Federal, Justiça Federal entre outros). Desde então, mais de 52 mil pessoas foram resgatadas de trabalho escravo no país.

Mas os números não arrefecem e continuam os resgates todos os anos, envolvendo as mesmas regiões, os mesmos setores econômicos e até os mesmos trabalhadores. Diz Leonardo Sakamoto, diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão, que o trabalho escravo é sustentado pelo tripé “ganância, impunidade e pobreza”. O Brasil muito avançou no combate, punindo os empregadores e atacando os elementos ganância e impunidade do tripé, o que o levou a ser referência mundial no assunto. Mas medidas de prevenção e assistência às vítimas, voltadas à eliminação da situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica de uma enorme parcela da população brasileira, ainda são bem tímidas.

E, enquanto for assim, vive-se no Brasil o verdadeiro suplício de Tântalo quanto ao propósito de erradicar a escravidão: tão perto e tão longe.

*Lys Sobral Cardoso é Procuradora do Trabalho no MPT-MT

Artigo originalmente publicado no Jornal A Gazeta do dia 13 de maio de 2018

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