Artigo | 12 anos da Lei Maria da Penha: evolução?

Por Renata Coelho*

Neste 07 de agosto de 2018 a Lei Maria da Penha, que trata da criação de mecanismos para coibir a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, completa seus 12 anos. Oportunidade para algumas reflexões no assunto, que voltou às manchetes esses dias diante do ocorrido em Guarapuava.

A violência doméstica não é endêmica, não está restrita a uma classe social ou grupo. Ocorre todos os dias em muitos lugares e lares, porém na maior parte das vezes invisível socialmente.

Ao longo dos séculos a violência contra a mulher, especialmente a violência que ocorre em suas relações afetivas ou familiares, foi considerada de menor importância. Em 2018 alcançamos será um patamar ideal de evolução com relação a isso? Parece que não.

Tornar questão da esfera pública a violência praticada no “recesso do lar” e travada na intimidade do núcleo familiar não tem sido tarefa simples. A mulher, para deixar o silêncio e adotar medidas para sua proteção e punição do agressor ainda demanda maior segurança, funcionamento eficaz do aparelho estatal policial, de assistência social e judicial, ou seja, de apoio e tratamento digno. Nesse sentido, a Lei nº 11.340/2006, foi um marco. Muito falta jurídica e socialmente, porém, para o real enfrentamento dessa violência.

A violência doméstica é o resultado de uma conjugação de fatores e a depender da origem do agressor e da vítima e suas condições peculiares a violência pode adquirir nuances, meios e intensidade diversas, mas não há violência mais ou menos grave. Esse ainda é um tabu da sociedade brasileira: graduar a violência doméstica com relação a outros crimes e mensurar a gravidade da infração de acordo com o tipo de lesão aparente, desqualificando lesões físicas leves e mais ainda os danos à saúde mental da mulher.

De fato, só atentar para a violência física, a que deixa marcas visíveis e duradouras, é concepção social que nem a Lei possuiu êxito em romper. As marcas da alma não são computadas pela sociedade como violência e os meios de prevenção e repressão contra a violência moral praticada contra mulher são quase inexistentes.

A violência doméstica possui, em território nacional, números expressivos e alarmantes, mesmo assim subnotificados e falhos, contando com a “negligência” estatal e dos serviços de atendimento, uma alta resiliência das vítimas e uma sociedade que recrimina a mulher vitimada e cultua o “varão” agressor. A vítima ainda sofre com a desqualificação ou culpabilização, com discursos sociais que servem à ocultação e à banalização da violência. Não esqueçamos, ademais, que a violência doméstica pode culminar com o feminicídio. Somente em 2015 o Estado brasileiro reconheceu que há mulheres que são mortas apenas por serem mulheres (Lei nº 13.104/2015).

Além de todos os evidentes males e danos causados pela violência doméstica, pouco se frisa que é ela uma causa que interfere na integração da mão de obra feminina. A violência doméstica dificulta o acesso e a manutenção do trabalho da mulher, bem como impacta a qualidade e a quantidade de sua produção profissional, repercutindo negativamente na igualdade de oportunidades, na sua saúde e no seu poder econômico, influenciando na competitividade que essa mulher precisa vencer junto a outras mulheres e principalmente junto aos homens.

Todos os dias uma legião de mulheres em idade economicamente ativa deixa de buscar trabalho ou de comparecer ao trabalho pelas agressões físicas e psicológicas sofridas. E, diferentemente das demais perversidades e violências em que a mulher é a principal vítima, como o assédio moral e assédio sexual, que se intensificam no ambiente laboral e na esfera pública, a mulher brasileira é potencial vítima de violência doméstica desde que nasce, em suas primeiras relações privadas.

Não é pouco o que a mulher no Brasil precisa enfrentar antes mesmo de escolher uma profissão, de se qualificar e de competir no mercado de trabalho, dentro de seu próprio âmbito familiar. Não há como desprezar os números avassaladores e de tê-los em conta em normas protetivas do trabalho da mulher, em políticas públicas de inserção no trabalho e normas de meio ambiente e organização de trabalho. Vale dizer que essa premissa é respaldada pelo art. 7º, inciso XX, da Constituição: “proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, nos termos da lei”.

Em outra perspectiva é por meio da inserção em atividade remunerada que muitas mulheres alcançam a independência econômica, que as permite libertar do perverso jugo masculino em suas relações íntimas. O trabalho, nesse aspecto, pode resgatar as mulheres vítimas de violência doméstica, devolverlhes um pouco da dignidade e integridade. Não sem razão a Lei Maria da Penha prevê, em seu art. 9, parágrafo 2º, II, garantia de emprego consistente na “manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses". Garantia esta desconhecida de muitos, pouco debatida e efetivada.

Façamos ao final uma ressalva para lembrar que a violência doméstica afeta todas as classes sociais e raças, o que não significa dizer que essa prática no Brasil não têm cor. Sim, a violência doméstica possui agressores típicos, locais mais comuns e cor dominante. A mulher negra é vultuosamente mais agredida e violentada que a mulher branca, conclui o Mapa de Violência 2015 e estudos da ONU e OMS.

Nestes 12 anos da Lei Maria da Penha, completados em 7 de agosto, é imperioso dar visibilidade a este mal, falar sobre ele, despertar as famílias, escolas, empresas, espaços sociais e aparelho estatal e tornar a eliminação da violência doméstica uma prioridade de todos.

*Renata Coelho é procuradora do Trabalho do MPT-DF.

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