Assédio moral: estarrecedor

*Por Leomar Daroncho

17/08/2015 - Dentre outras notícias assombrosas para o mundo do trabalho, 2015 já está marcado pelo caso ocorrido em Palmas-TO. Em junho, a grande mídia e as redes sociais reproduziram os detalhes da situação em que uma bancária passou mal e teve um aborto espontâneo. Ensanguentada, não pôde deixar a agência até fechar a tesouraria. Guardou por três horas o feto num saco plástico. No outro dia, após a consulta médica, retornou ao banco para passar o serviço a um colega. No que diz respeito ao abuso no exercício do poder nas relações de trabalho, o caso impõe um sinal de alerta máximo na forma como banalizamos e naturalizamos as práticas doentias.

A Psicologia Organizacional revela que o assédio moral provavelmente nasceu juntamente com o trabalho. Trata-se de um fenômeno social mundial que há cerca de duas décadas despertou o interesse de pesquisadores. A francesa Marie-France Hirigoyen publicou estudos com uma denúncia de âmbito mundial, tornando-se referência obrigatória no tema.

O fenômeno também foi estudado em outros países. Na Suécia, Heinz Leymann tornou conhecida a expressão "mobbing no mundo do trabalho". No Brasil, em 2000, Margarida Barreto estudou a manifestação na dissertação de mestrado intitulada "Uma jornada de humilhações".

Marie-France Hirigoyen fornece um conceito interessante para o assédio moral registrado no trabalho: "toda e qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou a integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho". A manifestação apresenta duas variantes básicas no que diz respeito às vítimas. A modalidade individual, em que há uma vítima singular, definida, e a administração por estresse.

Nessa segunda variante, o assédio é um elemento do modelo da gestão organizacional. Trata-se da administração em que são adotadas como técnicas organizacionais do empreendimento as estratégias agressivas, as metas elevadas, combinadas com a imposição de jornadas exaustivas, as ameaças constantes de perda do emprego e a intensa pressão psicológica. Em resumo, o ambiente é contaminado pela extremada competição interna. Já não basta atingir bons resultados empresariais, é fundamental sobreviver na ensandecida luta interna, e os colegas são transformados em inimigos. 

Como resultado, tem-se a degradação das condições de trabalho, que em geral ocorre de forma progressiva e sutil. 

O ambiente doentio também favorece a ascensão para os cargos e chefia dos profissionais mais ambiciosos, arrojados, audazes, destemidos e inescrupulosos. A ausência de comportamentos minimamente solidários pode desbordar para práticas e comportamentos que, apesar de chocarem pela falta de sintonia com ideais humanitários, não parecem dissociados das expectativas concretas resultantes de um ambiente doentio. E ambiente doentio gera doentes e comportamentos patológicos.

No aspecto simbólico - sinais da barbárie moderna -, o caso de Palmas talvez se aproxime da situação dos atendentes de telemarketing obrigados a utilizar fraldões geriátricos para reduzir o tempo de uso do banheiro. A produção não pode parar, e o indivíduo segue tentando adaptar-se à crescente exigência do empreendimento.

No plano estritamente legal, é do empregador a responsabilidade pela manutenção da higidez do meio ambiente do trabalho. Esse ambiente pode inclusive ser contaminado pela escolha de representantes ou prepostos inadequados. Nos tribunais, não encontra eco o argumento de que ignoravam as práticas de gerentes ou capatazes.

No caso de Palmas, em que ao invés de usufruir do seu direito legal de 30 dias de afastamento a trabalhadora ainda teve reduzido o tempo de recuperação para apenas quatro dias, é bastante provável que não seja suficiente ao Banco alegar que desconhecia a prática.

O conjunto de responsabilidades de um empregador que pretenda atuar de forma lícita - no setor que apesar da crise segue apresentando resultados financeiros significativos -, na nossa ordem jurídica, exige muito mais do que uma nota pública em que declara que o fato é "estarrecedor".

Sim, o ocorrido é estarrecedor, mas só ocorreu porque o ambiente e as práticas empresariais adotadas permitiram que ocorresse.

*LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho em Mato Grosso.

Artigo publicado originalmente no Jornal A Gazeta de 17/08/2015

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