Justiça reconhece legitimidade do MPT para defender direitos de um único empregado submetido a condições degradantes de trabalho
Com base em relatórios do CREAS, o MPT obteve a condenação de um empregador por trabalho escravo e o pagamento de indenização de R$ 200 mil por danos morais coletivos e individuais
05/04/2018 - O Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso (MPT-MT) obteve a condenação de Roberto Fidélis Simon, proprietário da Fazenda Vale Verde, por submeter um de seus trabalhadores a condições análogas às de escravo. Na ação civil pública movida pelo MPT, ficou comprovado o atentado a direitos humanos e a situação de vulnerabilidade do empregado, atualmente com 60 anos, analfabeto, sem capacidade para contar notas de dinheiro e que trabalha no local há mais de 10 anos sem carteira de trabalho assinada.
O juiz do Trabalho José Pedro Dias, da Vara do Trabalho de Cáceres, estabeleceu indenizações de R$ 200 mil, sendo que R$ 100 mil equivalem à condenação por dano moral coletivo e os outros R$ 100 mil à reparação do dano moral individual.
Na decisão, o magistrado salientou que as condições de trabalho degradantes às quais o trabalhador foi submetido causam inegável repulsa coletiva e intolerância social e reclamam não apenas a condenação ao pagamento de dano moral coletivo. “(...) é imperiosa a reparação dos danos morais individuais sofridos pelo trabalhador, configurados pela grave ofensa à sua dignidade humana por todo o período em que esteve submetido a condições de trabalho degradantes”, disse.
Para o MPT, “é inegável que a conduta adotada pelo réu, traduzida pela sujeição do trabalhador a condições degradantes de trabalho, uma das espécies de trabalho em condições análogas às de escravo, viola o ordenamento jurídico trabalhista e provoca dano social, gerando reprovação não só da coletividade de trabalhadores, mas de toda a sociedade, ferindo o senso ético médio da população”.
Na sentença, foi admitido o vínculo empregatício entre o dono da fazenda e a vítima e determinado que este proceda à anotação da CTPS do trabalhador. Para isso, utilizou-se como data de admissão o dia 24/02/2007. O MPT chegou a requerer, com base nas declarações do empregado, o reconhecimento do vínculo de emprego a partir de 11/11/1997, mas o pedido não foi acolhido pela Justiça do Trabalho.
O proprietário da Fazenda Vale Verde também foi condenado a recolher o FGTS devido no período e a cumprir várias medidas para adequação do meio ambiente de trabalho. Dentre as obrigações a serem observadas pelo empregador, sob pena de multa, estão a de disponibilizar instalações sanitárias em condições mínimas de higiene, com lavatórios, vasos sanitários, chuveiro, água limpa e papel higiênico; e a de fornecer água potável e fresca em quantidade suficiente para consumo. O réu deverá, ainda, sob pena de multa de R$ 50 mil por constatação, abster-se de manter trabalhadores em condições degradantes de trabalho, de consentir com a sua existência em qualquer de suas propriedades e de, por qualquer meio, contribuir com a sua prática.
Condições degradantes
O MPT instaurou um inquérito civil para apurar a denúncia de trabalho escravo a partir de ofício encaminhado pela 1ª Promotoria Cível de Cáceres. As irregularidades relatadas foram apontadas inicialmente pelo Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) do Município, após provocação do Ministério Público Estadual.
Três visitas técnicas foram realizadas pela equipe do CREAS à fazenda, localizada no Assentamento Vida Nova, no período de novembro de 2015 a janeiro de 2017. Durante essas visitas técnicas, ficou comprovado que a casa onde residia a vítima era feita de madeira, estava desprovida de higiene e era totalmente imprópria para o ser humano, sem banheiro e água encanada. Além das péssimas condições de moradia, o trabalhador vivia em local isolado e sem meios de locomoção, tendo sua própria liberdade de ir e vir prejudicada. Por ser analfabeto, não conseguia diferenciar notas, sendo incapaz de identificar até mesmo quanto de dinheiro realmente ganhava do seu patrão.
Na condenação, o juiz José Pedro Dias salientou tratar-se de típico caso de sujeição, que ocorre quando o trabalhador sujeita o seu próprio "ser" à figura do empregador, deixando de ter vontade própria e se tornando um objeto nas mãos do detentor do meio de produção. De acordo com o magistrado, a sujeição não se confunde com a subordinação, utilizada no art. 3º da CLT como um dos requisitos jurídico-formais do contrato de emprego. “O que se subordina ao empregador é o meio pelo qual o serviço é prestado, seguindo as regras determinadas, desde que estas sejam legais e morais”. A sujeição, por sua vez, “é quando o empregado, mesmo sabendo que a sua dignidade está sendo frontalmente maculada, vende a sua força de trabalho, laborando em condições degradantes, sem higiene, sem remuneração compatível, em ambiente de trabalho que oferece-lhe riscos à saúde e à vida, tudo porque é melhor ter um pouco, ainda que em péssimas condições, que nada”, esclarece.
Tanto para o MPT quanto para a Justiça do Trabalho, ao aceitar trabalhar em condições degradantes, a vítima não estaria exercendo o seu direito de livremente escolher o seu emprego, mas sim se sujeitando a condições que afrontam a sua dignidade, pois, antes de tudo, precisa se alimentar e alimentar a sua família, o que, por vezes, leva empregadores a se valerem da condição de penúria alheia para tratar seres humanos como propriedade privada, deixando de reconhecer neles a dignidade que lhes é inerente.
“Nesse sentido é crucial frisar que, embora o próprio trabalhador tenha expressado a sua aceitação às condições de vida e trabalho a que estava submetido na propriedade do réu, a situação relatada pelos assistentes sociais revela verdadeiro estado de sujeição do empregado, potencializada pelo fato de se tratar de pessoa não alfabetizada, condição que lhe reduz a capacidade de apreender a extensão de seus direitos trabalhistas e, igualmente, os direitos inerentes à sua dignidade”, afirmou o juiz na decisão.
CREAS
O CREAS é uma unidade pública destinada à prestação de serviços a indivíduos e famílias que se encontram em situação de risco pessoal ou social, por violação de direitos ou contingência, que demandam intervenções especializadas da proteção social especial. A validade dos relatórios produzidos pelo corpo de assistentes sociais do CREAS como meios de prova foi reconhecida na sentença.
Segundo o juiz José Pedro Dias, “(...) são plenamente válidos como meio de prova, uma vez que a constatação de condições de vida e moradia, como se deu no caso dos autos, não exige qualificação e conhecimentos específicos, não sendo imprescindível, como sugere o demandado, a realização de uma perícia técnica. Com efeito, a ausência de higiene, de água encanada e de banheiro, por exemplo, são circunstancias aferíveis por qualquer pessoa, observado o padrão do homem médio, e o enquadramento desses fatos como condições degradantes não foi feito pelas assistentes sociais, mas sim pelo autor da ação [MPT]”.
A sentença reforçou, ainda, que “os relatórios do CREAS, sendo este uma unidade pública, são dotados de fé pública, razão porque se presumem verdadeiros até prova em contrário (não produzida pelo réu).
Legitimidade
Para o MPT, um dos pontos principais a se destacar na sentença diz respeito ao reconhecimento de que também se insere em suas atribuições institucionais defender direitos individuais indisponíveis, mesmo que seja de um único trabalhador prejudicado. No curso da ação, Roberto Fidélis Simon chegou a questionar a legitimidade do MPT para atuar na ação, alegando que o órgão não estaria cumprindo o seu papel de defender direitos difusos ou coletivos.
O argumento, entretanto, não foi aceito pela Justiça do Trabalho, que entendeu ser mais amplo o objetivo da ação civil pública do que a defesa dos direitos de um único trabalhador, uma vez que a ofensa - submeter uma pessoa a condições degradantes de trabalho - transcende a esfera individual, “na medida em que a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, alegadamente ofendidos pelo demandado [Roberto Fidélis Simon], são fundamentos da República Federativa do Brasil, resultando em uma lesão a valores e bens fundamentais para toda a sociedade brasileira”.
O magistrado acrescentou que “ao pleitear a condenação do réu ao pagamento de indenização por danos morais coletivos e ao cumprimento de obrigações de fazer relacionadas ao ambiente de trabalho, em decorrência das condições de trabalho degradantes alegadas, é certo que o MPT não está a defender apenas o interesse do trabalhador vitimado, senão também de toda a coletividade, a quem interessa o respeito aos valores constitucionais acima mencionados”. De todo modo, concordou que os direitos individuais postulados em favor do empregado submetido a condições degradantes de trabalho são indisponíveis e, por isso, podem ser tutelados pelo MPT.
Processo: 0000393-69.2017.5.23.0031
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