Artigo: O que é um fim de semana?
Por Leomar Daroncho*
25/07/2016 - Um comentário lateral na mesa de jantar da fictícia propriedade rural de Downton Abbey, no início do século passado, provocou a curiosidade perspicaz da matriarca Violet Crawley: "o que é um fim de semana?".
O drama de época Downton Abbey, excelente produção da TV inglesa, retrata a vida dos Crawley, uma família aristocrática, e seus criados. Ambientada nas décadas de 1910 e 1920, apresenta o impacto das mudanças sociais e econômicas ao longo dos grandes acontecimentos históricos daquele período de grandes transformações: o reinado de Jorge V, as consequências da Revolução Industrial e a 1ª Guerra Mundial.
Naquele contexto, a surpresa irreverente da matriarca fazia todo o sentido. Para quem desfrutava as delícias de ser servido em tempo integral, por que seria necessário alterar a rotina? A vida estava tão perfeita na velha ordem, por que alguém necessitaria de pausas? Quanta ousadia! A criadagem, acomodada num elaborado sistema hierárquico com mordomos, criados e lacaios, não estaria à disposição por um dia inteiro?
No Brasil dos nossos dias, um século depois, choca e ganha as manchetes a declaração de um líder empresarial que, após reunião com o presidente interino Michel Temer e com empresários do Comitê de Líderes da Mobilização Empresarial pela Inovação - MEI, propõe, para enfrentar a crise, mudanças "duras" nas leis trabalhistas.
A pretexto de melhorar a competitividade, sugere a ampliação do número semanal de horas trabalhadas das atuais 44 para 80 horas (depois corrigido em nota para 60 horas). Justifica a inaceitável proposta como parte do esforço necessário da sociedade para atingir um "futuro promissor". Confessando ansiedade com as medidas, acrescenta que o "mundo é assim e temos de estar abertos para fazer essas mudanças". A anacrônica afirmação traz implícita a valoração de que os trabalhadores talvez não precisem de tantas pausas.
Voltando ao complexo período que marca a transição do Século XIX para o Século XX, é fundamental recuperar a memória da insurgência desencadeada em resposta à desigualdade social proporcionada pelos exageros do modelo de produção vigente, marcado pela excessiva exploração dos trabalhadores. O embate - ação e reação - ficou conhecido como a "Questão social". Vem desse período a conquista dos trabalhadores e da sociedade ao direito à limitação do número de horas de trabalho.
Um pouco antes disso, em 1891, mas ainda no contexto das intensas transformações do final do Século XIX, o Papa Leão XIII, na Carta Encíclica Rerum Novarum, advertia para o dever da autoridade pública de proteger o operário à desumanidade de "ávidos especuladores e patrões" que "abusam, sem nenhuma discrição, tanto das pessoas como das coisas", explorando a pobreza, a miséria e a indigência "reprovadas pelas leis divinas e humanas".
Como forma de proteger os bens da alma e da natureza, o Papa Leão XIII asseverava que não seria justo nem humano "exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer, pelo excesso da fadiga, embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo". Indica a necessidade de repouso, pois o trabalho não deveria se prolongar além do que suas forças permitirem.
A Carta Encíclica Rerum Novarum (coisas novas) é indicada como uma das referências da fase de transição para a justiça social, traçando regras para a intervenção estatal na relação entre trabalhador e patrão.
A ousadia - falta de pudor - da proposta empresarial de agora realmente impressiona. Ignora ao menos a história de um século da conquista de um marco civilizatório mínimo nas relações de trabalho.
Resta claro, portanto, que estamos diante de uma proposta que remete a coisas velhas, superadas. Contra ela, espera-se a mobilização da mesma reserva moral invocada por Leão XIII. Afinal, em 2016, fora da ficção, deveria escandalizar o "gênio dos doutos" e a "prudência dos sábios" a ousadia de quem eventualmente se sinta à vontade para perguntar "o que é um fim de semana? "
*LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho
Artigo originalmente publicado no Jornal A Gazeta do dia 25/07/2016