Mato Grosso e o combate ao trabalho escravo
Por Renan Bernardi Kalil*
14/09/2015 - O Brasil é referência internacional no combate ao trabalho escravo contemporâneo. Os principais instrumentos construídos pelo país foram: (i) o desenvolvimento de um conceito de trabalho escravo que repudia as formas mais intensas de desrespeito à dignidade dos trabalhadores; (ii) a criação de um sistema de fiscalização que atua na repressão do empregador que coisifica o empregado; e (iii) a "lista suja", que impede os empregadores que reduzem empregados a condições análogas a de escravo de serem financiados por bancos públicos e que mostra para toda a população quem pratica esse crime.
Recentemente ocorreram avanços nessa área, como a alteração do art. 243 da Constituição no ano de 2014. Segundo a nova redação desse dispositivo, em propriedades urbanas e rurais onde for constatada a exploração de trabalho escravo, haverá a expropriação e a destinação do imóvel para reforma agrária e para programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo das demais sanções previstas em lei.
Esse avanço legislativo, todavia, foi utilizado como tentativa de esvaziar o que se entende por trabalho escravo no Brasil. Isso porque foi apresentado no Senado o Projeto de Lei n. 432/2013, que pretende regulamentar a eliminação do direito de propriedade nos casos em que for constatada a exploração de trabalho escravo, restringindo o conceito desse crime: a escravidão contemporânea ocorreria somente nos casos de trabalho forçado e de servidão por dívida. O conceito atualmente existente no Código Penal é bem mais amplo e considerado um dos mais avançados no mundo. Entende como trabalho em condições análogas a de escravo: (i) trabalho forçado; (ii) servidão por dívida; (iii) condições degradantes; e (iv) jornada exaustiva.
Portanto, a aprovação deste Projeto fará com que situações nas quais o trabalhador dorme e se alimenta com porcos, faz refeições no chão próximo a fezes de vacas, aloja-se em moradias coletivas, amontado com suas crianças e instrumentos de trabalho e sem condições mínimas de higiene; come em embalagens vazias de agrotóxicos e realiza atividades sem qualquer tipo de proteção sejam consideradas como irregularidades trabalhistas simples.
Em 1928, o peruano José Carlos Mariátegui, ao estudar a sociedade incaica e as liberdades consagradas com as revoluções liberais do século XVIII, afirmou que "hoje uma ordem nova não pode renunciar a nenhum dos progressos morais da sociedade moderna". Transpondo essa análise para os nossos dias, considerando que o Estado Democrático de Direito coloca em seu centro a dignidade da pessoa humana, podemos dizer que o combate ao trabalho escravo não admite qualquer recuo conceitual que se queira operar na legislação brasileira.
Foi designado como relator do PLS n. 432/2013 o Senador José Medeiros, representante do Estado de Mato Grosso.
Vale lembrar que o nosso Estado foi pioneiro e inovador no combate ao trabalho escravo. Citamos dois exemplos. O estabelecimento de grupos móveis estaduais para fiscalizar a exploração de trabalho em condições análogas a de escravo, o que tornou mais célere e efetiva a apuração de denúncias e o resgate de trabalhadores em Mato Grosso. E a criação do Projeto Ação Integrada, concebido para garantir uma estrutura de assistência aos trabalhadores socialmente vulneráveis à exploração do trabalho escravo, de forma a promover uma integração socioeconômica e os afastar do ciclo da escravidão contemporânea. Trata-se de um projeto amplamente reconhecido pela sociedade, sendo que diversos órgãos, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinaram um termo de cooperação em agosto deste ano com o objetivo de fortalecer iniciativas nesse sentido.
O PLS 432/2013 é desnecessário para caracterizar a escravidão contemporânea, tendo em vista que já existe no Código Penal dispositivo que trata desse tema. Fazemos votos que o Senador José Medeiros mantenha a tradição de vanguarda do Estado no combate a esse crime e o conceito de trabalho escravo vigente na legislação brasileira seja mantido.
*RENAN BERNARDI KALIL é Procurador do Trabalho e Mestre em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela USP
Artigo originalmente publicado no Jornal A Gazeta do dia 14/09/2015
Foto de capa: MPF