Crianças: o presente e o futuro

Por Leomar Daroncho*

13/10/2015 - Uma das mais vivas memórias da infância na minha pequena cidade natal é a história (ou estória) de um rico empresário, analfabeto, que teria ouvido de um atendente bancário a provocação: “com essa fortuna, imagine onde o senhor estaria se tivesse estudado? ” A resposta veio de forma sagaz: “talvez tivesse me tornado um mero bancário”.

Verdade ou invenção, nossa cultura popular é rica de mitos semelhantes. São estórias que reforçam a ideia de que o trabalho precoce seria uma alternativa interessante para a criança. O senso comum apresenta casos de sucesso que recomendariam o trabalho das crianças pobres como alternativa para alcançar a prosperidade. Há ainda as observações de que o ócio representaria o grande risco e que o trabalho precoce contribuiria para a formação do cidadão.

Analisados de forma ampla, os estudos indicam que esse tipo de trabalho não enobrece. Antes, empobrece.

Há indicativos de prejuízos pedagógicos, óbvios, representados pela elevação dos números da evasão, que pode chegar a 40%, bem como da queda do rendimento escolar (cerca de 15% de redução nas notas) para as crianças que trabalham. Esse déficit na formação escolar, agravado com a quantidade de tempo dedicado ao trabalho, gera desestímulo e compromete a forma como se dá a inserção no mercado de trabalho. Trata-se de um processo que realimenta o ciclo vicioso da pobreza e reafirma as desigualdades sociais, pois as funções disponíveis para essas pessoas serão aquelas de menor qualificação e baixo reconhecimento social, inclusive na perspectiva da renda.

Essa é uma situação que não se ajusta à normativa interna e internacional de proteção especial à criança. No plano internacional, a proteção está presente desde a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança - 1924 -, passando pela Declaração sobre os Direitos da Criança – 1959 -, e mesmo na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e em estatutos e instrumentos relevantes das agências especializadas e organizações internacionais que se dedicam ao bem-estar da criança.

Internamente, a Constituição de 1988, no seu artigo 227, antecipou as diretrizes da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada em 1989, que institui o paradigma da proteção integral e especial e estabelecendo que todas as crianças, tal como os adolescentes, são sujeitos de direitos. Na sequência, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069, de 1990) traduziu a determinação constitucional em comandos que explicitam o dever da família, da sociedade e do Estado em assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Para efeitos do mundo do trabalho, nas mais variadas formas de exploração, esse conjunto de normas protetivas poderia ser sintetizado no direito das crianças ao não trabalho.

Apesar da clareza da normativa de proteção, o trabalho infantil ainda é um grande problema social no Brasil. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD/IBGE, entre 2012 e 2013, ainda temos 3,1 milhões de trabalhadores na faixa etária de 5 e 17 anos de idade. É um expressivo universo de brasileiros que se encaminham para realimentar a roda da exclusão e da miséria.

Boa parte do problema reside na variável cultural, que faz com que nossa sociedade naturalize e estimule o trabalho das crianças.

A data comemorativa de 12 de outubro, apesar de reconhecida legalmente desde 1924 e estimulada com propósitos comerciais – indústria de brinquedos - a partir da década de 1950, continua se apresentando como uma oportunidade para reflexão acerca das práticas, inclusive sociais. Ao menos para as crianças pobres, a educação é o único presente com potencial de sinalizar um futuro libertador do ciclo da miséria.

*LEOMAR DARONCHO é Procurador do Trabalho em Mato Grosso

 Artigo originalmente publicado no Jornal A Gazeta do dia 12/10/2015

Foto: Prêmio MPT na Escola 2014, Farias e Brito

Imprimir